domingo, 16 de fevereiro de 2014

Astrogildo, o sapo contemplativo.

Não se podia dizer que fosse uma figura bonita, mas sem dúvida trazia em seu porte um "quê" de elegância. Elegância esta que o impedia de ser discreto, ainda que assim o desejasse. Sim, ele era discreto, mas não imperceptível.
Nossa personagem pertence à classe dos anfíbios. Isso mesmo. Trata-se de um sapo. Seu nome? Astrogildo. Astrogildo não é diferente perante outros da sua espécie. Sim, mas isso se falarmos em características físicas, comportamentos básicos de sobrevivência. Não possuía nenhum detalhe diferenciado, se não fosse um pequeno hábito, pouco comum, que cultivava: Todos os dias, ao final da tarde, pontualmente às dezoito horas, sempre, mas sempre mesmo, re- li-gi-o-sa-men-te, lá estava ele no seu local favorito: em cima, no topo do muro, logo após a primeira curva da rua. Não pensem vocês que tratava-se de reflexo de posturas oportunistas do nosso amigo. Nada disso! Costumava ficar na esquina, bem na "quininha" do muro, de forma a ampliar seu campo visual. 
Ninguém nunca entendeu direito como ele conseguia chegar lá encima, pois apesar de o muro não ser dos mais altos, ora essa, era um muro! Território pouco convencional aos sapos se pensarmos na estrutura anatômica destes, posto não possuírem pernas tão longas. Fato este que, todos sabemos, os fazem ficar por aqui e ali, tranquilões, naqueles saltinhos baixos que não os deixam escapar das crueldades das crianças.
Astrogildo era um dos menores de sua família - sempre fez parte do grupo menos robusto do bando. Bando?! Que bando?Não. Definitivamente não compunha nenhum bando, pois tinha hábitos distanciados aos demais. 
Bom, mas como eu dizia, com certo ar concentrado, ou mesmo grave, mantinha, em especial, este comportamento incomum que, além de destacá-lo ( ou por isso mesmo!), começava a render-lhe alguns problemas: "Quem ele pensa que é?", " Só quer ser o diferente!", "Certamente quer ser melhor que todos nós!", eram alguns dos comentários que começava a perceber vindos em sua direção, por parte de outros sapos. Astrogildo procurava manter-se sereno e tranquilo, pois não pretendia competir com ninguém, nem entrar em pelejas. Era bem sapo nesse sentido...O que ele mais desejava, o que o motivava a buscar as alturas, apesar das adversidades, era algo bem mais simples: poder ver melhor, mais ampliadamente, o mundo que o circundava. Além disso, nunca gostou mesmo dos lugares mais rebaixados e úmidos, não via razão de, sendo ele anfíbio, estar sempre em atoleiro.
O fato de estar todos os dias no mesmo lugar habitual, e sempre à mesma hora, o fez notado também pelas pessoas, seres "superiores" que por lá passavam nesse horário do dia. Era interessante perceber o quanto ele chamava atenção das pessoas, tão maiores que ele, inclusive em seus problemas sempre tão sérios...
Ao entrarem na referida rua, logo os transeuntes buscavam-no com o olhar, discretamente. Tinham a nítida impressão de que já o enxergavam de longe, mesmo que, por vezes, isso ainda não fosse possível, pois Astrogildo era pequeno fisicamente, ainda que seu ar e postura o transformassem em gigante.
Certo era, para os olhares mais atentos, a importância que o sapinho já possuía na rotina de todos. Importância negativa, ele já sentia, pois já percebia olhares maldosos à espreitá-lo. Sentia que seu fim estava próximo, ou mesmo o fim de seu hobby, que tanto o agradava. Perguntava-se em quê incomodava seus pares, pois se era tão "na dele"! Surpreendia-se com as pessoas, que ao passarem por ele, se esticavam ao máximo, a fim de futucá-lo, hostilizá-lo. Crianças já entravam na rua com pequenas pedrinhas, para arremessar-lhe, sob sorrisos furtivos dos pais....Todos pareciam extrair certo prazer em destruir o prazer do sapinho. A razão...Astrogildo não entendia.
Com o passar do tempo, as agressões foram aumentando em frequência e incrementando-se em crueldade, supostos amigos também já o toleravam menos. A notoriedade da singularidade de Astrogildo parecia um gargalo para quem se pensava igual...
Astrogildo não sabia o que fazer, onde andar, como viver. Se a altura ameaçava sua integridade física, o atoleiro o desesperava. Angustiou-se a ponto de quase enlouquecer, pois, apesar de gostar da contemplação, do silêncio, de certa solidão, era um sapo normal, com necessidades de convivência também.
Não sabia mais o que fazer. Vivia choramingando. Um dia, o inesperado aconteceu. Enquanto choramingava, afogando-se na sua dor que, ingenuamente, só ajudava a aumentar, ouviu um chamado:

- Sua dor é combustível pra mais dor. Procure se acalmar.
- Quem é você?
- Sou uma borboleta. Chamam-me "Borboleta Morpho Azul", nome longo e pomposo recebido às custas de anos de evolução da minha espécie. Sou uma das mais belas da minha espécie e isso não me custa pouco. Chamo atenção de todos e isso tem me rendido alguns problemas, mas aprendi a melhor forma de lidar com a maldade inerente à predação. Todos temos predadores, Astrogildo. Durante meus vôos ao entardecer tenho observado você e o que têm sofrido. Sua angústia é legítima, pois percebo que tens sido alvo de espécies que não são suas predadoras naturais. Caso complexo...
- Pois é, Dona Borboleta. Eu que sempre fui fascinado por enxergar mais longe, mais amplamente, não tenho mais conseguido nem me entender, quanto mais saber em quê os atinjo...
- É esse o problema. As alturas não são naturais pra todos, nem todos são aparelhados para suportar suas consequências, caro amigo. Minha espécie nasceu pra isso, a sua não. Sua inclinação é legítima, mas carece de aperfeiçoamento. Aprendi a confundir meus algozes, aprenda você também. Não é preciso deixar de desejar, basta preserva-se, busque confundí-los, camuflar-se. Seres dados à maldade não são muito inteligentes, são meros oportunistas, não lhes forneça oportunidade. Tenho que ir. Boa sorte!

Astrogildo nunca mais foi o mesmo depois desse encontro. Aprendeu que não se abandona o próprio Desejo, muito menos por meras vontades alheias. Se ele desceu do muro? Não. Ao contrário! Estudava agora meios de subir ainda mais alto. Mas aprendeu a se camuflar. Aprendeu que a arte da observação tem de estar a serviço da auto transformação. Logo saiu do alvo dos futriqueiros que -  por suas visões curtinhas - sobrevivem, apenas sobrevivem, de pequenos saltinhos e de condenar a singularidade alheia.












quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

Respirar é mais!

Respirar é básico, mas não é fundamental.
De outra forma, como explicar os dias em que passamos, ainda que sobressaltados, respiração presa e coração apertado?
Respirar é básico, mas não é suficiente.
Se assim fosse, como continha-se o aperto ao aspirar ares impuros e covardes, ausentes de compaixão?
Respirar é básico, mas não é pra todo mundo.
Para ser solidário, o ar precisaria ser melhor colocado, preciso, exato, entre a dor e o ato
esquivando-se do confuso.
Respirar é básico, mas não é independente, atrela-se sempre ao Desejo.
Desejo de ser contente.

Do sentir...

Preciso escrever quando não consigo falar. Preciso escrever quando o sentir me assombra. Mas quando o sentir me destrói, preciso me ouvir...